Verrugas em mãos de açougueiros de um supermercado da cidade de São Paulo

O açougue representa um setor muito importante para a economia do Brasil. Há cerca de 55 mil deles, que geram um faturamento de 1,6 bilhão de reais por ano ao país1. A profissão de açougueiro é descrita como exposta a agentes de risco biológico, devido à manipulação constante de carne com sangue, gorduras e fluidos que restam de seu processamento que precisa ser preparada para exposição no balcão de venda. Além disso, o açougue pode ser uma fonte considerável de zoonoses, doenças transmitidas do animal ao homem. A contaminação por agentes biológicos (principalmente bactérias, fungos e vírus) pode ocorrer pelo contato com objetos contaminados, pelo sangue e pela carne, assim como por acidentes com objetos pontiagudos, máquinas de corte, picadores de carne e seladores de embalagens, que também expõem o trabalhador a riscos de acidentes2.

Entre os riscos biológicos, podemos encontrar contaminação por agentes virais como o papilomavírus (HPV), mais predominantemente o HPV de subtipo 7, caracterizado como "verruga do açougueiro"3. Estudos realizados na Inglaterra comprovam que o subtipo 7 é o mais frequentemente encontrado nesses trabalhadores manipuladores de carne, entre açougueiros e funcionários de abate4.

O HPV induz lesões epiteliais ou de mucosas tanto em homens quanto em mulheres, mostram um crescimento limitado e habitualmente regridem de maneira espontânea por ação do sistema imunológico5. As verrugas são como pápulas ou nódulos de consistência firme e superfície endurecida/queratótica. Elas são mais frequentes no dorso das mãos e dos dedos6,7, localizadas no leito ungueal ou na dobra periungueal, o que dificulta a terapêutica6.

Identificar lesões nas mãos dos açougueiros é de extrema importância para estabelecer diagnóstico e nexo causal ocupacional, a fim de propor medidas de controle higiênico-sanitário necessárias8,9. Apesar de haver descrição de lesões há muitas décadas10, há poucos registros de casos de lesão verrucosa em açougueiros no Brasil. Por isso, documentar esse achado poderá contribuir para a melhoria da saúde dos trabalhadores que manipulam carnes.

O objetivo do estudo é avaliar a presença de lesões verrucosas em trabalhadores do setor de açougue de um supermercado na cidade de São Paulo (SP).

MÉTODO

Este estudo transversal descritivo foi realizado em um supermercado na cidade de São Paulo (SP) durante o ano de 2017. A empresa tem um total de 411 funcionários e 26 estão no setor de açougue (6,3%). Os trabalhadores convocados para o exame periódico de saúde eram convidados a participar da pesquisa e 24 pessoas (92,3%) fizeram parte do estudo.

Todos responderam a uma entrevista sobre características sociodemográficas, anamnese clínica sobre sinais e sintomas e informações sobre a função laborativa atual. Os participantes foram submetidos à inspeção da pele e as lesões encontradas foram documentadas por foto. Foram consideradas como verrugas a presença de pápulas verrucosas ou lesão em couveflor nas superfícies dorsal, palmar ou periungueal das mãos e dos dedos. Também foram incluídas como casos as lesões de pele circunscritas com descamação nas bordas e presença de vasos trombosados no centro ("pontos pretos"), compatíveis com verruga em remissão por tratamento.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética — CAEE 79768817.0.0000.5479/2017).

RESULTADOS

O processo de trabalho no setor do açougue se inicia com o recebimento da mercadoria pelo açougueiro todas as noites. O material é levado à câmara fria e lá é armazenado. A carne é, então, dividida em cortes pelos açougueiros e organizada pelos balconistas de açougue, que dispõem o material no balcão de vidro para exposição ao cliente. O produto pode também ser pesado, embalado em bandejas e plastificado pelos funcionários do açougue e exposto em geladeiras, facilitando, assim, a compra para o consumidor. O mesmo processo é feito com a carne de boi, a de frango e a de porco. A jornada de trabalho é de oito horas por dia, com uma hora para almoço, vinte minutos para café e uma folga por semana. Os trabalhadores recebiam luva de aço para proteção das mãos de lesões corto-contusas.

A maioria dos participantes eram homens (87,5%) e metade deles (50,0%) estavam na faixa etária de 31 a 40 anos. Apenas um funcionário iniciou no setor há menos de dois anos (4,2%). Lesões como verrugas ou cicatrizes de lesões com ponto preto em região central foram encontradas nas mãos de 11 açougueiros (45,8%) (Tabela 1). Todos relataram tratamento com medicamento tópico a base de ácido salicílico e ácido láctico.

Entre os lesionados, os homens eram maioria (81,8%). Porém, proporcionalmente, as mulheres foram mais acometidas (66,6%). Da mesma forma, os destros foram maioria (81,8%), mas todos os canhotos apresentaram lesão. Foi observada lesão bilateral em dois trabalhadores destros. Todos os lesionados tinham ao menos dois anos de trabalho na função na empresa (Tabela 1). É possível visualizar as lesões e suas características nas Figuras 1 a 4.


Figura 1. Trabalhador do sexo masculino, 48 anos, há 4 anos na função de açougueiro. Região palmar esquerda com presença de múltiplas lesões planas hiperqueratóticas com vaso trombosado no centro da lesão; no segundo quirodáctilo, uma lesão hiperqueratótica plana e uma lesão papular de consistência endurecida queratótica.

Figura 2. Trabalhador do sexo masculino, 27 anos, há 3 anos na função de açougueiro. Região palmar direita com presença de duas lesões papulares, de consistência endurecida e queratótica, com bordas descamativas e presença de vaso trombosado no centro.

Figura 3. Trabalhador do sexo masculino, 32 anos, há 16 anos na função de açougueiro. Região dorsal do segundo quirodáctilo com presença de uma lesão papular de consistência endurecida, hiperqueratótica e presença de vasos trombosados no centro.

Figura 4. Trabalhador do sexo masculino, 34 anos, há 2 anos na função de açougueiro. Região palmar direita com presença de uma lesão papular, hiperqueratótica, com borda descamativa e vaso trombosado no centro e uma lesão em falange proximal do quinto quirodáctilo papular, com bordas descamativas, de consistência dura e hiperqueratótica com vaso trombosado central.

DISCUSSÃO

As dermatoses ocupacionais constituem o grupo mais frequente entre as doenças ocupacionais11,12 e são caracterizadas por "toda alteração da pele, mucosas e anexos direta ou indiretamente causada, condicionada, mantida ou agravada por tudo aquilo que for utilizado na atividade profissional, ou exista no ambiente de trabalho"13. Por outro lado, avaliar essa patologia torna-se difícil, pois a maior parte dos casos não chega aos especialistas devido à automedicação ou ao tratamento em ambulatório da empresa14.

Entre os principais fatores de risco para as dermatoses estão as causas indiretas individuais do trabalhador, como idade, gênero, etnia, antecedentes mórbidos de saúde, história familiar, clima local, hábitos e facilidade de higiene14,15. Há causas diretas no agravamento ou desencadeamento de lesões dermatológicas como agentes químicos, físicos, biológicos ou mecânicos, que atuam diretamente na pele do trabalhador exposto15,16. No trabalho do açougueiro, que faz parte do setor de alimentação, há contato com agentes físicos (por exemplo, frio e umidade), biológicos (por exemplo, HPV 7) e mecânicos (microtraumas), além de possíveis traumas cortantes pela manipulação de ferramentas2,15,16. O HPV é o agente biológico mais frequentemente encontrado em trabalhadores que têm contato direto com animais e carne de animais infectados, como os açougueiros e os abatedores14.

A prevalência de verrugas encontradas nesse supermercado da cidade de São Paulo (SP) teve valor um pouco menor que o encontrado em um abatedouro francês (49,2%)17. Seu diagnóstico é feito através de investigação com reação de cadeia de polimerase (PCR)5 e exame dermatológico. Estudos internacionais indicaram a presença de HPV dos tipos 1, 2, 3, 4 e 7 nas mãos de açougueiros4,17. Esta pesquisa realizada com brasileiros não realizou a investigação laboratorial para confirmar a presença do HPV.

Não há consenso a respeito do tempo de exposição que favoreça o aparecimento de lesões. Autores informam a relação com histórico ocupacional de contato contínuo com carne bovina por ao menos dois anos4. Na Alemanha, houve relato de lesões verrucosas por HPV 7 sem histórico de manipulação de carnes em período prolongado18. Neste estudo, todos os lesionados exerciam atividades no açougue com manipulação de carne bovina há pelo menos dois anos.

Outro ponto importante identificado é o descumprimento da legislação de boas práticas para manipulação de alimentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). De acordo com a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) ANVISA nº 216/20048, os trabalhadores manipuladores de alimentos devem ser afastados do trabalho quando há a presença de lesões ou sintomas de doenças que possam comprometer a qualidade sanitária ou de higiene na preparação de alimentos. Esse afastamento deve permanecer enquanto persistirem as condições clínicas incompatíveis com o exercício das tarefas de manipulação8. Quanto à regulamentação sanitária do município de São Paulo (SP), é recomendado ao manipulador que apresente cortes ou lesões a proteção efetiva por curativo e uma cobertura à prova d'água, como dedeiras ou luvas protetoras impermeáveis9. Identificamos que, na rotina de trabalho desse açougue, há uma deficiência no controle e na obediência às legislações vigentes.

Como limitações deste estudo, os resultados não podem ser generalizados para outros grupos, pois a pesquisa foi realizada em uma unidade específica dessa rede de supermercados. Apesar da presença de achados compatíveis com o quadro dermatológico de verrugas, os casos encontrados eram de lesões em resolução após tratamento. Ademais, a impossibilidade de avaliação histopatológica não permite concluir que a etiologia estava relacionada ao HPV 7. Por fim, outras questões relativas ao histórico clínico não foram investigadas, assim como a presença de lesões similares entre trabalhadores de outros setores da empresa.

CONCLUSÃO

Houve maior prevalência de verrugas nas mãos de homens, trabalhadores com até 40 anos, destros e que trabalhavam no açougue há pelo menos dois anos. Foi observada a presença de lesões nas mãos que manipulam os instrumentos compartilhados que podem ser a fonte propagadora do vírus entre os funcionários. Portanto, deve ser investigado se o contato indireto é um fator de transmissão do vírus.

Pela epidemiologia de lesões e plausibilidade biológica, podemos sugerir que foram detectados casos de dermatoses ocupacionais de verrugas em trabalhadores em açougue de supermercado na cidade de São Paulo. Como a legislação brasileira recomenda a notificação de suspeita de agravos relacionados ao trabalho, caberia ao empregador promover investigação da etiologia e do nexo causal. Por exemplo, surto de casos na região pode explicar um aumento de frequência, sem que necessariamente o meio propagador seja o ambiente de trabalho.

É importante que medidas de avaliação clínica e análise dos procedimentos de segurança sejam revisadas e adequadas a fim de garantir condições higiênico-sanitárias suficientes para proteger os trabalhadores do risco de infecção pelo HPV no local de trabalho, bem como o risco de contaminação dos produtos comercializados. Ações de prevenção de agravos de pele e de promoção de saúde dermatológica focada nos trabalhadores do açougue podem estar contempladas no Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional com o objetivo de elevar os padrões de qualidade de vida e bem-estar, e reduzir o risco de restrições para o exercício do trabalho como manipuladores de alimentos.

Fonte: rbmt.org.br